segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

INGRATIDÃO (Rubens Lemos e Berilo Wanderley) - Interpretada por Maíra Salles

sábado, 29 de janeiro de 2011

A FAZENDA - Ilustrações de Iaperi



A FAZENDA

Na fazenda me fiz, longe
à  dor e ao falso.
Espingardas nao feriam
o canto-pássaro;
Os teteus idilionavam
sobre a lagoa
E o milharal florescia
em sóis e brasa.
O verão tornava a carne
da terra em pedra
Mas as chuvas amansavam
os bois na serra;
O boi morto transmudava-se
em fogaréu
e os urubus em fulvo mel;
Xiquexiques não feriam
O céu aberto
das tardes, como em mim
o verde sexo;
Meu avô desconhecia
a metafísica
E dizia: "Antes, seguir
a vida à risca".
(BW)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

BLOG DE CARLOS EDUARDO ALVES - ESPAÇO CULTURAL

Berilo Wanderley


Consagrado como um dos jornalistas mais brilhantes de sua geração, revelou-se como poeta com o livro Telhado do Sonho, em 1956, quando tinha apenas 22 anos de idade. Augusto Severo Neto o descreveu assim: cronista da cidade, garimpando lirismo em suas ruas e em suas horas e nos dando beleza de presente, neste instante em que a beleza é tão necessária.

O MENINO E SEU PAI CAÇADOR


O MENINO E SEU PAI CAÇADOR 


            O homem amava as caçadas, através das manhãs e das matas da fazenda. O menino amava acompanhar o pai, feliz à sua som­bra altiva e amiga, uma espingarda ao ombro, chapéu de abas lar­gas na cabeça, bornal de lona caindo do ombro, carregado de munições; outro, ligeiro nas pernas e no olhar, para correr e apanhar o marreco que caía depois do tiro certeiro.
            O açude prateava suas águas mansas e os marrecos navega­vam lá, felizes e descuidados. O menino cismava, olhando as aves e, um dia, descuidou-se a ver um casal delas, em idílio na margem da lagoa. Enquanto o pai se embrenhava, através das juremas, ele ficou ali, calado, mãos nos bolsos das calças curtas.
            Os dois marrecos - marreco macho, marreco fêmea - idi­lionavam como só sabem amar as aves, isto é, através de cantos brejeiros e volteios no corpo bailarino. Como deviam amar os ho­mens se fossem mais sábios e mais poetas. O menino sentou sobre uma pedra a ver. O céu da fazenda era azul, dos galhos das jure­mas e pereiros vinham cantos matinais de toda a espécie. Cantos emplumados.
            De repente, um tiro. O menino voltou o rosto. O pai chegara e, por trás de uma moita, na traição sorrateira dos homens caça­dores que estão com todas as vantagens sobre a sua presa, tinha acertado no marreco macho. Parou o canto, parou o bailado. Pa­rou o tempo nos olhos do menino.
            O homem espera a ação do menino companheiro. A carreira em busca da caça tombada. O menino não sai da pedra onde esta­va. Diante dos olhos dos dois, um marreco que sangra, e outro que ensaia um avoar assustado. O açude é sereno e manso, como se to­das as coisas continuassem em seus lugares e o ritmo da vida não tivesse sofrido nenhum golpe.
           Não houve guisado de marreco, naquele dia na casa cercada de amplas varandas e de ventos uivantes. O homem deitou-se nu­ma rede e ali ficou, o dia inteiro, livro diante dos olhos, como fa­zia sempre que voltava das caçadas e ficava a esperar o almoço. Mas silencioso como as tardes mornas da fazenda. O menino, a partir daquele dia, aprendeu a cismar mais demoradamente sobre coisas que não entendia bern, mas sabia que estavam bem acima da dor que fere o mundo e maltrata a paz das coisas.
           Na outra manhã, beijou o pai, preparou o seu bornal, ajei­tou-1he o chapelão na cabeça. Mas o homem partiu sozinho e inse­guro para a mata.
(BW)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

DE UM AMIGO


DE UM AMIGO

             Soube pelos jornais que os irmãos franciscanos se reuniram com o Prefeito e mais algumas pessoas, e que comeram lebre e be­beram vinho, lembrando a figura de São Francisco de Assis. A reunião foi da chamada "Sociedade dos Amigos de São Francisco de Assis". Sou, nesta cidade, um grande amigo de Francisco de As­sis e, tenho a certeza, se os frades do convento Santo Antonio sou­bessem disso, me teriam chamado. Ou nem precisava isso. Basta­ria eu ter sabido que ia haver esse jantar dos irmãos franciscanos, para ter corrido até lá. E quando, diante da porta solene e alta do convento, um daqueles filhos espirituais do Patriarca da Umbria me perguntasse quem era eu para querer entrar, diria somente:
"Sou amigo de São Francisco de Assis"!
           Queria muito me sentar a uma mesa franciscana, conversar com aqueles frades pobres, ouvi-los falar daquele que amava a tu­do e a todos, enquanto um outro estendia a mão por cima do meu ombro e me entregava uma caneca de vinho. E sei que nas pales­tras deles ficaria conhecendo muito mais meu amigo Francisco do que através de umas páginas de Chesterton ou de uma tela de Giotto ou de Frei Angélico. E sei também que entrando lá os bons franciscanos não me negariam o pedaço de lebre com o trago de vinho, num bom exemplo dos santos frades das regiões italianas por onde Francisco andou, os quais sempre costumam oferecer pão e vinho aos visitantes e quando estes se vão dizem ainda: "Ci rivedremo in cielo!" (Aqui prá nós: "Tornaremos a nos ver no céu!").
            Ah, como me sentiria bem percorrendo os corredores conven­tuais, com frades me falando de tudo, me descobrindo toda a poe­sia e o amor que eles encontram ali dentro. Pois estes de hoje tam­bém amam a tudo e a todos, como o filho de Pietro di Bernardone. Preciso ficar amigo de todos aqueles franciscanos, o mais cedo possível. E preciso saber quando a "Sociedade dos Amigos de São Francisco de Assis" vai reunir-se de novo. Se eles não me convi­darem, irei sozinho e farei como disse acima. Lembrarei que sou amigo daquele que anda pelas estradas da Umbria com uma flor ou um crucifixo na mão e seu cântico de amor na boca:
             "Laudatu si, mi signore, por ser acqua,
              La quale é molto utile e pretiosa e casta".

(BW)

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A ILHA



A ILHA

            De repente, a notícia salta do jornal e me cai na alma: uma ilha vai ser posta em leilão, no próximo dia 27. Fica na regiao de Parati, Rio de Janeiro, pertence ao Serviço de Patrimônio da União e, práticamente, o grande obstáculo aberto entre mim e a ilha está no preço. Os lances devem começar, inevitavelmente, de Cr$ 1 milhao 540 mil.
            Quem não se perturba com a notícia de uma ilha a venda?
Quem não quer ir viver numa ilha, longe dessa parafernália que se estabeleceu sobre as cidades modernas, uma ilha sem televisão e sem automóvel, sem conhecidos chatos e sem banco para man­dar dizer que tal dia é o pagamento da promissória? Quem?
            Dá logo vontade de pensar naquela c1ássica lista dos livros fatais que, fatalmente, se levaria para uma ilha deserta, onde o tempo sobra e as horas se estendem, frouxas, pela espaço aberto. A releitura sempre adiada do Cervantes, do Proust, do Balzac. E depois, o mar em frente e a vida soberana, como requisitava o poeta.
            Tenho um amigo um tanto maniaco que, quando se vê com um papel diante dos olhos e um lápis na mão, começa a desenhar um montinho de areia com um coqueiro de lado e um bonequinho deitado debaixo. É ele em sua ilha. Certa vez, quase ia suspenso da repartição pública onde trabalha, porque, ao receber um pro­cesso para meter um carimbo, o que fez foi desenhar a bruta de uma ilha no lugar da carimbada. Foi preciso rasgar a folha, por­que processo não rima com ilha.
            Para aquela ilha de Parati, com seus 145 mil metros quadra­dos, plantada bem diante da foz do rio Barra Grande, como diz o anúncio, quem não puder mesmo dar o lance maior, pois a Lote­ria Esportiva continua ainda sendo uma esperança fugidia na vida de cada um, que faça como eu: arme-se das mais firmes intenções, tome a certeza de que a ilha já é sua, ponha a um canto os livros, a vara de pescar, a única bermuda e única camisa que pretenda levar,deite-se e durma. Terá, então, o mais belo, diáfano e pra­zenteiro sonho de toda sua pobre vida.
 (BW)

domingo, 23 de janeiro de 2011

O CANTO DO CISNE

          O CANTO DO CISNE

             O Bar e Confeitaria Cisne, uma tradição e uma legenda na vida boêmia e na paisagem humana de Natal, fechou suas portas, definitivamente. Apagaram-se as suas luzes foscas, como um pal­co que desce a cortina ao fim do último ato. Só faltou virem ao procênio os irmãos Miranda - Múcio, Ademar e Rossini - para receber as palmas dos últimos boêmios, remanescentes de uma confraria fraterna que povoou, durante trinta anos, aquele espaço, proseando e tomando cerveja, alegrando o coração, esquecendo mágoas, que, como as águas passadas, não movem moinho de nin­guém.

            A confeitaria enfeitava a fachada. Os três Miranda se desmanchando em cortesia e frases bonitas, no atendimento às senho­ras e às crianças que chegavam à procura de doces, caramelos e salames. No segundo estágio do estabelecimento, vinha o bar, em contraponto. Onde se movimentaram as figuras joviais de Luizi­nho, Doublecheque, Albimar Marinho, maestro Alcides Cicco, Newton Navarro ainda o artista quanto jovem, o poeta Evaristo de Souza. Quase todos são fantasmas a sobrevoar a solidão do espa­ço vazio, neste final de abril, cantando em réquiem para o Bar Cisne.

             Zé Américo, o garçom bojudo e cordial, se desmanchando para a clientela que era como que sua família, sentando, vez em quando, na mesa, de um ou de outro, para tomar um solidário co­po de cerveja. O maestro Cicco chegava, voz de tenor, pedia uma champanha, e esnobava, triunfalmente. Albimar Marinho repetia um trecho de fandango, que sabia de cor, como os passos que en­cenava através das mesas. E havia o freguês que, vez em quando, rompia de dentro de um jipe de aluguel (era o início dos anos 50), pagava adiantado a "corrida" até sua casa ao chofer conhecido, entrava no bar embriagava-se de frisante. 

             Depois que se foram, vai agora o Bar Cisne. Vai ceder lugar ao que chamam de progresso, isto é, um bloco de cimento armado com vigas de ferro que dará muito mais dinheiro ao dono do chão. Os irmãos Miranda não vão abrir outro bar em parte alguma, pa­ra que o cisne, cheio de saudade, nunca mais cante, nem sozinho nade, nem nade nunca ao lado de outro cisne.

(BW)

LES BOUQUINISTES

            PARIS, 5 de janeiro - Quem vai a Paris, não pode deixar de percorrer os "bouquinistes" das margens do Sena. Identificam a cidade e dão-lhe um tom de lirismo despreocupado. Os tabulei­ros escuros se enfileiram, unidos uns aos outros, sobre os paredões do rio, e logo de manhã cedo, se não faz chuva, destampam-se aos turistas que por ali passam e ao próprio francês que os conhecem bem, expondo livros velhos e novos, estampas antigas, reproduções de mestres da pintura, aquarelas de pintores anônimos mostrando recantos da cidade. Em alguns, a especialidade da casa: novelas pornográficas, confissões de alcovas de condes, marquesas e ca­mareiros enfim toda essa fogosa literatura, graça de pobres estu­dantes solitários e mocinhas feias.
             Um "bouquiniste", para mim, é, no fundo, um escritor frustrado. Talvez, com seu romance inédito dentro da gaveta. Com que desvelo eles nos falam daquele escritor de quem seguramos, com interesse, um livro no momento. Nota-se em seu discurso que há menos interesse de vender, que, mesmo de tornar patente as qualidades do "Les Fleurs du Mal", que está em todos os tabulei­ros, nas mais diversas edições de um Balzac sempre solicitado, e cujo prestígio entre a freguesia é inconteste.
             Subindo ou descendo Paris, eu cruzava pelos "bouquinistes". Uma edição velha e barata de um bom autor, vez por outra me fa­zia parar. E ali ficava a percorrer outros volumes, com esse mes­mo prazer antigo com que sempre remexi em estantes de livrarias. Se em Natal mesmo, entro diariamente em livrarias, não é tanto para ver se algum livro novo chegou. É pelo gosto de remexer em edições que não são minhas, mas que estimo. E quem muito reme­xe, sempre está descobrindo uma coisa boa. Quantos livros bons que se tem não foram achados assim, à toa!
               Mas, falava era dos "bouquinistes". A um deles, comprei uma aquarela de um pintor anônimo. Nada de arte, no desenho, apenas preocupado de mostrar, numa forma de emoção bem-in­tencionada, um trecho de sua cidade, ou um ser dessa mesma ci­dade que ele, o pintor, amou. E acima de tudo, a necessidade de alguns francos para o pão de cada dia e o teto de cada noite.
(BW) 

SAMBA

SAMBA

Meninos, lá vem a Escola de Samba!
Mulatos cansados,
mulatos suados,
tirando cadência dos seus tamborins
riscando compasso no asfalto molhado,
enchendo o espaço de um samba que fala

de um caso de arnor ...
Reparai a morena
que é  porta-estandarte,
repleta de samba na carne cabôcla;
do samba nervoso,
que desce do morro; .
do samba que fala de coisas tão simples,
trazendo legendas do velho Noel;
pedaço da gente que vive no môrro;
do magoado Ataulfo chorando pois é ...
jurando que Amélia é  mulher de verdade ...

Reparai os mulatos!
Riscando a cadência do samba no chão,
as vozes pesadas
parecem cansadas.
Têm algo de triste
È a mágoa da raça,
Tristeza do negro cantando na praça!

Escola de Samba!
Tamancos rasgando cadência no chão.
Pandeiros rasgando cadência no ar.
A Escola de Samba não pode parar.
Meninos, abri alas,
deixai-a passar! ...

(BW)

sábado, 22 de janeiro de 2011

ANDALUZIA: TERCEIRO POUSO



ANDALUZIA: TERCEIRO POUSO

MÁLAGA, abril - Málaga é mar. E o Mediterrâneo contornando a Costa do Sol e já a nos perseguir muito an­tes que entrássemos na cidade, nos tornou Málaga profunda­mente simpática. Os navios estão fumegando ali em cima da cidade. Navios de toda parte. De todos os tamanhos. Com gente de todo jeito. Turistas, marinheiros, descuidados via­jantes. Por isso, por causa do mar, Málaga é uma cidade agitada. Colorida. Alegre. Antes de percorrermos uma longa estra­da atá as margens do Mediterrâneo-praia, onde se ergue Torremolinos, crescendo entre turistas que ali passam suas férias de prima­vera e verão e fazendo valer o prestígio de seus pescados esquen­tando a vista do bom comedor, antes disso, fiquemos aqui mesmo, dentro da capital de Málaga, aproveitando esta tarde de sábado, sossegando o corpo displicentemente numa dessas cadeiras de cal­çada desse bar onde há tanta gente e de toda espécie. Gordos se­nhores louros, denunciando origens nórdicas, cá estão frente ao copo de cerveja, bem mais saborosa que a má cerveja de Madri, por exemplo, tão aguada. E as mulheres, tão bonitas. Até agora, as malaguenhas são as segundas mulheres da Espanha. As primei­ras são mesmo as madrilenhas. Cruzam a  nossa frente, falando muito depressa. Em volta, umas tomam sua cerveja com chanque­te. Sabem o que é chanquete? Vou comparar mal, mas não tenho outro jeito. Parece isso mesmo: minhoca. São peixinhos miúdos que parecem minhocas, e muito brancos, mas que depois de fritos, sequinhos, no prato, são uma delicia. Me apresentaram aos chan­quetes nessa primeira tarde de Málaga, tarde de sábado como fi­cou dita lá em cima. Ali ficamos a devorá-los, levando-os a boca em punhados, como quem agarra farinha seca. Mais a cerveja, a boa conversa e, a uns cem metros, o mar, colaborando para com uma eventual vida soberana. A cigana corre para nós e, em meio a um pregão ininteligível, nos estende uma porção de coisas da ter­ra para atrair turista. Um espanhol, Miguel, que esta conosco, fala para ela que nada quer, e ante a surpresa do castelhano tão fami­liar, prorrompe numa gargalhada de lindos dentes alvos, saindo para um senhor louro de sangue quase a jorrar do rosto.
(BW)

BECO DA LAMA


BECO DA LAMA           

             Sobre a foto de muitos anos, amarelecida, desvendo passos e lembranças. O velho Beco da Lama, que eu também poderia cantar num dístico cheio de elipses mentais. A foto tem dez anos. Eu passava ali, repórter de um jornal. Amigos simples descobriam a cabeça, tirando o chapéu. Invariavelmente, meus amigos do Beco usavam chapéu. Chapéu de feltro, chapéu de pano, chapéu de palha, como havia chapéu para ser tirado à passagem do pobre repórter.
             No bolso, pouco dinheiro. Mas havia riso na alma. Contava as notas e via que dava para comer um bife de fígado no “Restaurante Pérola”, onde comi os melhores bifes de fígado de toda a minha vida. Eram espessos, generosos, sangrentos e acebolados. E o garçom caprichava comigo, de quebra, uma enorme cebola extra deitada em um prato e dois vidros de pimenta: um de molho inglês, outro de malagueta. (Agora, lembro que, quando eu era menino, ouvia lá em casa os mais velhos chamarem o molho inglês de molho vegetal, e eu fiquei com uma curiosidade incrível para conhecer o mineral e o animal, até hoje...)
             No Beco, encontrava Seu Pedro, o tanoeiro, mestre na arte de fazer bicas. Gordo, usava umas camisas enormes que pareciam verdadeiras bandeiras a envolver-lhe o corpo. Quando me via, abria o rosto num riso como sua alma e eu sabia que era hora de tomarmos uma meladinha no boteco de Nasi. Mestre Nasi, descendente de árabe, narigão a despencar-se sobre o rosto, era o dono das melhores meladinhas do Beco. Senão da cidade inteira. Caninha, mel de abelha e dois pingos de limão. Havia sempre para tira-gosto um caldo de feijão de alegrar os corações mais duros, ou uns miúdos de galinha que eram a graça da casa.
             Até o mestre Nasi mudou-se do Beco. Esse Beco que, nas quebradas da noite, ficava soturno como uma alma penada, três ou quatro lâmpadas, soltas aqui ou ali, a iluminar a sua solidão. Era a noite dos bêbados trôpegos e das mulheres errantes. Na foto de 1968, o poste que não existe mais, com o velho abajur de ágata a guardar uma lâmpada cheia de enigmas. E parece que ouço o vento, solitário vento, correndo por ali, para desfazer-se num sopro só, lá adiante, na Rua Ulisses Caldas. Beco da Lama, nunca te louvaram, te louvo agora na lembrança que essa velha foto desvenda.
(BW)

Berilo Wanderley em três momentos alegres de sua vida. Parece que foi ontem - Francisco Sobreira

          
  
Berilo Wanderley em três momentos alegres de sua vida. Parece que foi ontem
        
             No ultimo dia 20 completaram-se nove anos da morte de Berilo. Nove anos e ressuscitemos o lugar-comum parece que foi ontem que, trafegando pela Hermes da Fonseca com destino ao centro, parei, à frente de um sinal. Um carro emparelhou-se ao meu e, de dentro dele, uma  voz chamou por mim. Me virei e vi o Joã Batista Machado. "Ja soube o que aconteceu com Berilo"? perguntou. Disse não e ele emendou: “Morreu de um enfarte".
            O impacto da notícia foi maior pelo inesperado da ocorrência. Ha menos de uma semana Berilo estivera no lançamento do meu livro A Noite Magica, na Livraria Universitária. Dois dias antes ele me fizera recordar, através da coluna que mantinha nesta Tribuna, os grandes filmes exibidos em Natal em 1966.    Naquele ano, Berilo, eu, Franklin Capistrano, Gilberto Stabile e Moacy Cirne escolhemos os dez melhotes filmes, cujo primeiro lugar coube a O Eclipse, de Antonioni. Ele comparava a programação cinematográfica em Natal em 1966 (em que tivemos Antonioni, em dose dupla, Godard, Kubrick, Bunuel, Fellini, Visconti e Welles) com a de 1979 (até meados de julho), com infinita desvantagem para a do último ano.
            Mas ao falar de Berilo no ano nove de sua morte, não pretendo tornar ainda mais lamentada a sua ausência na paisagem humana e no contexto cultural de Natal. Isso já foi dito tantas vezes por ocasião de sua morte. Prefiro lembra-lo em três momentos alegres em que o flagrei em sua condição de homem simples, quase diria de pessoa comum, que deve ser bem conhecida daqueles que privaram de sua intitnidade.
            1°) Tinha ido procurá-lo no Diário de Natal, que ainda funcionava na Rio Branco. Berilo se ausentara da redação fiquei esperando que ele retornasse. De repente surge ele lá de dentro cantarolando, em alto som, os primeiros versos de um antigo sucesso de Orlando Silva, que eram "se magoei teu lindo coração, perdão amor". Todos os presentes riram e não faltaram as piadas provocadas pela cena.
            2°) Num sábado a  noite estava reunido com companheiros do Cine Clube Tirol, em uma das mesas do Glacial. Em dado momento, quem vemos apontar na porta? Ninguém menos que Berilo. Com uma satisfação e um prazer inestimáveis o acolhemos na roda. Estava alegre e loquaz, em dia de peregrinação pelos bares. Não lhe faltava assunto (previsivelrnente tinha que falar de cinema, acompanhado que estava de cineclubistas). Lá pras tantas, Berilo fez a seguinte pergunta: "se cada um de vocês soubesse que só teria um ano de vida, o que desejava fazer"? Juliano Siqueira antecipou-se a todos e passou a enumerar uma série de atos terroristas que praticaria contra a ditadura militar, mas antes de concluir foi interrompido por Berilo: "amigo, desse jeito você não teria um mês de vida". A gargalhada foi geral. Quando ele quis ir embora, insistimos para que ficasse mais um pouco. E foi, nesse instante, que Berilo cometeu um ato falho que punha à mostra o dilema entre o desejo de continuar no bar e a obrigação de voltar para casa. "Eu vou à busca do bar.... ou do lar", disse com a voz pastosa.
            3º) Foi na encenação de O Pagador de Promessas, pelo grupo de Jesiel Figueiredo. Eu ocupava uma poltrona a poucos passos da frisa onde Berilo se encontrava, juntamente com João Batista Machado e respectivas esposas. Eis que entra em cena Sebastião Carvalho, no papel do padre. Parece que Machado disse algo muito engraçado sobre a presença de Sebastião (que, aliás, com sua figura rotunda metida numa batina, nada convincente na pele de um sacerdote, prestava-se mais ao riso do que à admiração); talvez fosse o efeito do vinho que Berilo provavelmente entornara antes de ir para o teatro. O certo é que lhe deu um prolongado acesso de riso, que desviou para si as atenções dos espectadores mais próximos. E logo para ele, de quem dizem que se empenhava para não ser alcançado pelos holofotes.
(Francisco Sobreira)


terça-feira, 18 de janeiro de 2011

POEMA ÀQUELA QUE NÃO VEIO

POEMA ÀQUELA QUE NÃO VEIO
 
 
Os teus olhos têm uma suavidade
de lenda antiga. Negros! mas sem trevas,
teus olhos para mim não têm abismos.
A eles fui, e só vi coisas tranqüilas.
Sobre eles, andam preces em vigília.
Se os teus olhos enlouquecessem e viessem,
seriam como dois cavalos negros,
atropelando a angústia dos meus olhos.. .

O teu corpo imaturo é de água límpida.
Límpida e tranqüila. Trás do teu corpo
o cheiro íntimo de luxúria ingênua,
ainda não libertada. . . A tua boca
onde alvoradas frescas desmaiaram,
tão cheias do frescor da madrugada,
tem que vir embalar-me, como um cântico ...

Não me trouxeste essa beleza calma,
morna, saudável, despreocupada,
que enche de luar os meus olhos tão turvos,
e que só pelos teus se desfraldaram ...

Se enlouquecesses e me procurasses,
queria que viesses cheia de acácias,
jogadas pelo vento, como palmas.
Um punhado de acácias nos teus seios.
Um punhado de acácias no teu sexo.
Mas, as tardes passaram e as acácias
rolaram pelo chão, inutilmente.. .

(BW) 

SANGUE E ÓPIO

SANGUE E ÓPIO

Tu trouxeste nos lábios um punhado
de sangue, feito de volúpias loucas.
E o sangue nos meus lábios derramado, 
sentimos gosto de ópio em nossas bocas.

Bebe de um sôrvo as minhas queixas roucas!
Mistura o teu pecado ao meu pecado!
E depois, muitas horas serão poucas.
E tanto, tanto sangue derramado ...

Os teus beijos ateus vão-se, deixando
gosto de tua carne em minha boca
e um gosto de ópio me narcotizando.

E tu hás de sentir, quando me deixas,
uma vontade triste de ser louca,
pois bebeste tristeza em minhas queixas.. . 
(BW)

domingo, 16 de janeiro de 2011

BERILO WANDERLEY - Marize Castro


 Quando um homem parte, mal sabemos o que o aguarda, quando esse homem é um poeta, um bom bebedor de vinho, um apaixonado por uma única mulher, um fazedor de crônicas, amigo de pássaros, achamos que ele virou nuvem e agora passeia pelos céus indiferente aos homens armados de razão e apego. Vozes ecoam dentro de nós. Pertencemos a um mundo onde as pétalas confundem-se com o zinco. Martírio e prazer manifestam-se no dia-a-dia. ­Mas queremos falar de um poeta, Berilo Wanderley, que partiu há dez anos em alguma nave brilhante demais para os nossos olhos de vermelhidão e ventania. Sabemos muito pouco das pessoas quando elas estão perto da gente, mesmo que elas mereçam o nosso respeito e admiração. Berilo foi muito amado, amado pelos amigos, amado por Maria Emilia, sua mulher, amante, ("Berilo foi e é o meu brinquedo"), falou da cidade de Natal com carinho e sutileza, a sutileza dos apaixonados. Um cronista dos dias, das cores, das dores, do amor. Se aqui estivesse Berilo compartilharia deste trabalho feito no Galo. Este jornal feito com o carinho que habita os guerreiros. Porque somos guerreiros, outros românticos que não esquecem que entre sim e o não, há receio de se perder. Mas este editorial era só para dizer que Berilo Wanderley tornou-se nuvem. Ave.
(Marize Castro)

SE TODOS FOSSEM IGUAIS A VOCÊ - Bosco Lopes


            SE TODOS FOSSEM IGUAIS A VOCÊ

           Berilo, graças a Deus, você não está vivo para ver a miséria do goveno Collor. A situação está tão ruim, que não dá para o meu consumo diário, no bar do nosso amigo Nazi, jantar no Nemésio, nem pensar! Comprar livros? Só nos sebos. Meu poetinha, tô aqui pensando nas estórias que você contou Não da Espanha, muito menos de São Paulo, quanto mais de Paris; mas por que não, Bira, do Beco da Lama, onde a gente papeava tão feliz?
            Vindo você, da redação ou da Promotoria, pouco importa, o importante é que você vinha cheio de vida e poesia e enchia todos os espaços alegria, mesmo antes de consumir a primeira garrafa de vinho. Balançando seu cabelo louro cacheado, que mais tarde virou preto e que infelizmente a porra do enfarte não deixou ficar todo branco.
            Na função que exercia na Promotoria, estendia-se ao Bar do Nemesio, onde também lá não condenava ninguém. A não ser Dr. Assis, quando não embriagado. Entre os carinhos de Maria Emilia, lembrava os tablados de Espanha. Tão distante do menino do Alecrim, que nos olhos claros via o tempo passar entre feirantes e feireiros.Quem diria que daquela paisagem humana iam nascer e renascer tantas crônica bonitas!
            Pois quem vê não sabe e nem sente. Pois quem sente não vê. E pois quem vê não sente. Se fosse uma questão de vista e se fosse uma questão de viver eu não sentia o arpejo do cego no seu realejo, num bar de um domingo qualquer, na cidade, aos poetas homenagear.
            Bira, você, entre a Augusta e a Angélica, veio reencontrar, entre copos e amigos, no Beco da Lama a consolação.
(Bosco Lopes)

ANTES DO SOL

ANTES DO SOL          

           Poucos, bem poucos estão acordados a esta hora. Não sabem o que estão perdendo, de olhos e ouvidos fechados nesta madrugada já pré-manhã, quatro e meia no relógio. As nuvens se esgarçam para os lados do nascente, como uma manada de ovelhas "abrindo caminho" para o pastor passar.
          O pastor é o sol, que não tarda. Agora, ainda faz aquele frio, que vem, com a brisa sussurrante própria das madrugadas, acariciar o corpo da gente. Ainda há silêncio em todas as coisas e as plantas cochilam no jardim. Faz paz na horta, as touceiras de couve ressonam. Quem esta acordado a esta hora? - pergunto a mim mesmo, enquanto estou debaixo do chuveiro, cantando baixinho uma velha canção de amor, bem baixinho para não acordar a casa.
          Os boêmios, gastando os saldos da última dose, estão se mandan­do para casa, arrependidos de todos os excessos e prometendo não beberem mais nunca. Os vigias, guardiões dos sonos alheios, sem direito a um cochilo, estão guardando o apito e enrolando a capa grossa de lã. E os mais cordiais amigos da noite - os ladrões e os lobisomens - vão tratando de escafeder-se, antes que o primeiro raio do sol os apanhe a descoberto.
           Agora, me debruço sobre a máquina de escrever, e enquanto a  imaginação vagabundeia, os olhos passeiam pela rua quieta, pela grama do jardim onde uma leve capa de orvalho ainda brilha. Um cachorro arruaceiro, boêmio e pilantra, está sentado sobre as patas traseiras, focinho virado para o nascente. Deve estar aguardando o sol para sua saudação pobre mas sincera. Como deveriam fazer todos os homens. Mas deixa os homens dormir. Assim, os que estão despertados cobrem-se de mais privilégios para, do alto de sua benéfica solidão, presenciar a manhã. E um deles, como eu, batuca uma crônica apressada e espera o cheiro bom de café subir da cozinha, para a primeira chávena e a primeira prosa.
(BW)

POEMA DA MENINA DE MINHA RUA

POEMA DA MENINA DE MINHA RUA

Menina de minha rua,
eu namoro com você
e talvez voce nem saiba.
(Mas, nem precisa saber ... )
Menina de minha rua,
pobrezinha que faz dó.
Tem um só vestido, um só,
mas tão cheio de poesia ....
Menina da minha rua
tem uns olhinhos miúdos,
por onde a dor nunca entrou
(Mas, ela diz que é mentira:
- Ela entra, sim senhor! ... )
Menina de minha rua
tem uns cabelos pretinhos,
onde a noite. certa noite,
se perdeu, se embaraçou...
Menina de minha rua
Contam que ela, todo o dia,
sofre de melancolia
e canta umas coisas tristes
e chora pra se acabar....
Menina de minha rua,
simplesinha como quê...
Menina de minha rua,
eu namoro com você
e talvez você nem saiba
(Mas, nem precisa saber...!)
(BW)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

BLOG RECANTO DAS LETRAS - Talis Andrade

Berilo Wanderley

               (trechos)

                2

Neste mundo de mortos-
                carregando-o-vivo
Berilo amava os irmãos bichos
criados soltos no quintal
sem marca de ferro e laço

Ossos e gesso
sangue e verniz
os bichos velam
a santa lapinha
resguardando o sono
do Menino Jesus


3

Na sala de visitas
do sobrado das tias
do maravilhado Berilo
os vizinhos vêm espiar
O Menino Jesus
dorme tranqüilo

Na manjedoura
o Menino deitado
nas secas palhinhas
Os sonhos cantados
pelas pastorinhas

Nas ricas mansões
estouram champanhes
Nos mocambos amontoados
nas encostas dos morros
as crianças choram
de frio e fome

Crianças transportadas
do chão de terra batida
                de suas casas
para a areia fofa
e o cal
das covas rasas


7

Um carneiro gigante
exibia na testa
a reluzente estrela
da tentação e da sorte
Um carneiro mágico
do longe Piauí
tudo prometia
Uma chuva de ouro
uma chuva de prata

O terso esplendor
de tantos tesouros
não possuía
                nenhum valor

                Para Berilo
a riqueza consistia
em sua coleção de discos
de música antiga
os livros de versos
uma garrafa de vinho
para uma conversa amiga


8

A fortuna vem da poesia
a ventura das coisas simples
os meninos cercando o palhaço
por uma entrada no circo
o gáudio de um filme de Carlitos
os namorados de mãos dadas
ao som da retreta na praça
a terna amizade da cachorra Baleia
lambendo o rosto de Berilo
o eterno rosto de menino
violentado pela visão do mundo

- - -
In poema Os Três Reis Magos
Talis Andrade

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

BERILO, AQUI E ALÉM - Diógenes da Cunha Lima

Busco Berilo e o encontro transformado em rosas vermelhas no lugar
em que seus avós já são senhores. Era assim que ele desejava ser
enquanto derramava poesia nos cantos, recantos e encantos dessa
cidade da Natal. Ele está cercado de pessoas queridas. Luis Carlos
Guimarães lhe faz provar o fruto maduro de sua poesia.
Gilberto Avelino usa um brilhante sextante como navegador que é,
enquanto apascenta o vento leste. Luis da Câmata Cascudo preside
todos os folguedos, cores e alegrias. Os meses, vestidos como raparigas,
novembro à frente, desfilam para lhe ofertar f1ores, xananas
sempre abertas.
A mesma brisa nata1ina refresca o céu, no passar lento do vento
Berilo existe e resiste, soprando Elíseos e carinhos por sobre
Maria Emilia, Henrique, Rômulo, Alexandre e Milena.
Aqui, aos setenta anos de sua presença e vinte e cinco de ausência, os
 homens continuam a trazer para suas mulheres o suor, o pão quente e
o amor. Berilo transformou-se em rua, escola, centro acadêmico, cinema e saudade.
Berilo é uma pedra preciosa que se faz luminosa em nossa lembrança.
Diógenes da Cunha Lima

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

PRÊMIO DO FESTNATAL ANO 2009 - Refletores da fama

O prêmio que leva o nome do colunista da Tribuna do Norte, Berilo Wanderley, criado pelo FestNatal para homenagear o jornalismo e a literatura cinematográfica potiguar, foi outorgado este ano ao editor Abimael Silva.
O troféu foi entregue pela viúva de Berilo Wanderley, Maria Emilia, na cerimônia e premiação do FestNatal.

PORTAL CASA DO BRUXO - www.casadobruxo.com.br/poesia.htm

Francisco Berilo Pinheiro Wanderley nasceu em Natal, a 21 de abril de 1934. Em 1956, aos 22 anos, reuniu sonetos e poemas em Telhado do Sonho, seu único livro. O poeta foi cedendo lugar ao jornalista e daí surgiu um excelente cronista, crítico literário e de cinema. Como jornalista, trabalhou no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas o apelo de sua terra foi mais forte. Foi professor do curso de Jornalismo da Fundação José Augusto e, depois, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O nome do Centro Acadêmico daquele curso, até hoje, leva seu nome. Durante muitos anos, assinou a coluna Revista da Cidade, no jornal Tribuna do Norte.
Tamanho talento tinha uma fonte inspiradora que era conhecida de todos: Maria Emília, sua mulher. Dessa união surgiram Henrique, Milena, Rômulo e Alexandre, além de linhas e linhas, de poesias e crônicas, que imortalizou o amor entre os dois.
Berilo faleceu a 20 de julho de 1979.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

BERILO - Newton Navarro


BERILO

            Não pude vê-Io. Tanto Maria Emilia o protegia da morte, que ela não aceitava levá-lo assim tão brutalmente em pleno alvorecer do dia.
            Temia a visão dos outros, dos muitos presentes aquela hora, como se nossos olhos pudessem tomá-Io, de todo, dos seus olhos somente. Agarrava-se, assim, ao barco, ao madeirame, com todas as energias e as amarras do amor, nessas horas tão fortes quanto o próprio amor verdadeiro, igual aquele de que estava mais do que nunca possuída. Prendia-se alma e corpo aquele barco estranho, escuro, embora coberto de crepe e flores coloridas, que logo mais levaria seu Poeta para a ilha estresonhada, quem sabe, de há quanto? O rosto macilento e chorado ocultava o outro rosto frio do Capitão de longo curso de Poesia e Amor, que Iogo mais partiria para as ter­ras do nunca mais, embora ela soubesse que em breve o barco teria de partir e mãos amigas, desronhecidas, talvez o empur­rariam para um singrar em águas azul cinzentas, onde a Poesia seria desde logo o misterioso farol da sua aventura como fora sempre em vida a sua norma de seguir. Maria protegia Berilo com aquele medo terrível que as grandes tragédias revelam. Menos o medo em si, que os grandes mortais temem, e mais o mis­terioso vago vazio, solitário tempo de vida que além da fronteira ardente da morte que o amante atravessou. Não que­ria sabê-Io perdido, a viajar dentro em pouco para longe de si, dos filhos, da casa, da cidade. Não sabia ainda com­preender nada daquilo tudo que a cercava: o pranto lento de todos, aquelas flores, aque­las tochas a recender ainda mais a vida e morte do seu Poeta, sobretudo o olhar es­pantado dos filhos diante da­quela nau de espanto, ancora­da diante de uma cruz, onde um homem chagado e com­passivo olhava em silêncio de bronze todo aquele drama. E o choro quase velado da mãe, e sua desolação e funda mágoa que poucos percebiam? Só, ela, a Mãe na dor maior quando outra vez, arrancavam de si o filho, como já uma vez outrora, levaram-no de vez de seu morno e doce seio para as claridades de um mundo nem sempre feliz e claro.
           Assim, nao pude ver o que­rido e velho primo-amigo. Cantor maior da minha Cidade, simples e bom, um franciscano quase perfeito, em busca mais do "absoluto" - como tão bem escreveu Sanderson do que do imediatismo das coisas fúteis que fazem os artifícios, as vaidades, o viver desses dias de desditas, mais ainda sem ele, agora mais pobre pela sua ausência.
           E foi melhor não parar por um instante os meus olhos molhados diante do seu rosto. Sei que para isso fomos feitos como diz o Poeta maior "para olhar a face da morte", sim, mas a brutalidade do golpe não dava tréguas para esse ofício mais do que qualquer outro, de puro misticismo, de lenta oração, de demorada meditação frente à escultura da morte. Ali não. Ali, somente o silêncio ou a fuga. Ou o quase não conformar-se. E por isso saí de perto daquele barco ancorado ainda por instantes no chão que tanto amara e a que dedicara amor somente comparável ao esposo admirá­vel e ao Pai excelente que foi.
         Saí, Berilo estava sob a proteção de Maria Emília e as preces molhadas de Maria Amélia. Mais longe, os fi­Ihos. - Sua alegria sempre, indagavam quem sabe, a ra­zão daquilo tudo, aquele barco escuro, aqueles olhos entre atônicos e lacrimosos que cercavam seu Pai dor­mindo. Por que não o dei­xavam descansar? Por que não deixavam que somente sua Mãe embalasse Painho naquele sono tão fecundo de lembran­ças, saudades, reminiscên­cias? Saí não sei para olhar o quê. Salete me sustinha o pranto, palavra, atitudes. A tarde estava clara. Poucas nuvens, e junto a capela, um flamboyant luminoso clareava, com mil fogachos bem rubros o velório do Poeta. Não, não assistiria a sua partida. Queria-­o nas antigas alegrias que espa­Ihara em palavra, canto, gestos. Sua eterna presença de alegria. A viva inteligência, sua bagagem de conhecimentos que como "estrangeiro" carre­gava pelas "gares" do mundo. O seu conversar, cantante. Seu modo todo seu de dizer coisas que um misto de poesia e sátira enfeitavam.
           Saí, simplesmente. Não vi bem nada ao derredor. Não me vi. Passei andando entre pas­sos e casas. Pronunciava pala­vras do meu coração, somente. E lembrava um não sei quê lembrando sempre enquanto meu velho amigo, aquele audaz moço do trapézio vlante que de capitão, agora de misteriosas aventuras, ganha­ria. Dentro em breve, os lon­gos rumos da sua ilha baudelairiana. Assim, fui saindo, como saio desta crôni­ca, que não sei como comecei nem como termi...
(Newton Navarro)