segunda-feira, 14 de março de 2011

POEMA QUASE DESONESTO PARA UMA NOIVA


POEMA QUASE DESONESTO PARA UMA NOIVA 

Dentro daquela noite buliçosa,
você passou por mim como uma estrela,
das que rasgam o céu cheias de pressa,
passam correndo, mas deixando o rastro.
E me disseram, lá mesmo na festa
que você já é noiva. Que tem isso?
Há tantas noivas que não são honestas ...

Vá ver seu noivo, antes de mim, de tudo,
Dê-lhe a sua alma e dê-lhe o corpo, até.
Encha·lhe os dedos de carícias virgens
e seja dele as vezes que quiser.
Depois, venha me ver. Na última noite.
Quando seu corpo inda estiver saudável.
Há de encontrar aberta a minha porta,
que não se fecha, desde aquela festa.
Estou deitado, à espera dos seus passos...
(Ah! queira Deus você não seja honesta!...)

                                                        (BW)

quinta-feira, 3 de março de 2011

5 CRUZEIROS


5 CRUZEIROS

            - O senhor me dá outra nota, que essa eu não recebo não.
            - Por que é que não recebe?
            - A nota está muito velha e ninguém enxerga os números.
            - Ah, então você é cego. Porque eu vejo tudinho.
            - Olhe o senhor, até este pedaço está faltando.
            - Mas isto não empata de ler os números. Os números estão é aqui.
            O homem não queria se convencer que sua nota de cinco cru­zeiros estava mesmo sem jeito. Ao meu lado, no banco do ônibus, discutia e discutia, debruçando-se quase sobre mim, a ponto de me atrapalhar a visão e quase o fôlego. O condutor também era in­transigente e queria os dois cruzeiros da passagem.
            - Veja se tem dois cruzeiros miudos aí.
            - Não tenho, não, meu senhor. Se tivesse, não ia puxar esta nota de cinco.
            E ficaram naquela conversa. Palavra prá cá, palavra prá lá.
            Até que, não aguentando mais aquele homem teimoso debruçado para cima de mim, pedi-lhe a nota, rasguei-a em pedacinhos e disse-lhe:
           - Deixe que lhe pago a passagem.
           O que eu queria era acabar de vez com aquela zoada em ci­ma de mim. Sabem que não gosto de zoada. Se não sabem, fiquem sabendo agora, porque pode qualquer um de vocês que me lêem, um dia viajar comigo, em qualquer estrada da vida. Então não fa­ça zoada. Mas, voltando ao ônibus e seu passageiro teimoso. Quan­do tinha rasgado a nota e pago quatro cruzeiros, por mim e por ele, e já me julgava tranquilo, o tal homem bate-me no braço e diz:
           - O senhor está me devendo 3 cruzeiros.
           - 3 cruzeiros de que?
           - Ora, o senhor rasga meus 5 cruzeiros, paga 2 de minha
passagem. Cadê o troco?
           - Que troco? - perguntei já começando a querer acreditar na matemática do homem.
           - O troco dos meus 5!
           - Meu amigo, - tentei lhe explicar - eu quis lhe fazer um favor, porque aquela nota não prestava mais. O senhor é que podia me dever 2 cruzeiros. Mas, não deve nada.
           - Não deve nada o que? O senhor quer me enganar com 3 cruzeiros.
           Antes que o homem falasse alto e todo o ônibus soubesse que eu o queria "enganar com 3 cruzeiros", puxei miudos e lhe dei, convencido de que não dou mesmo nem para fazer caridade nem para matemática.
(BW)
COMO UM OLEIRO

             Invado a casa de Dorian Gray e, de repente, me vejo cercado de cores, cores e cores. São cores que se alastram pelo chão, sobem pelas paredes, avançam sobre nós, como a querer devorar-nos. São telas, são tapetes, são mosaicos, são murais enormes se agigantan­do sobre uma parede e que parecem querer rasga-la e ganhar a rua, o mundo.
              E ali é o mundo desse homem que vive em febre permanente de pintar, de traçar esboços, olhos voltados unicamente para as co­res de onde arranca a beleza que sua sensibilidade e seu talento fazem cada dia mais renovada. Me espanta a capacidade de reno­vacão sobre o que fez ontem desse inquieto pintor, que me acostumei a admirar numa amizade lenta e que vem de muitos anos. Me espanta descobrir cada vez que vejo um trabalho novo de Dorian Gray uma feição diferente uma experiência nova, que o faz nunca repetido sobre si mesmo. Agora mesmo, nesta visita que faço ao seu atelier, o pintor mostra-me umas pinturas sobre madeira, fei­tas com uma técnica que não sei exprimir nem repetir aqui, e que nem parecem ser do mesmo artista, que pintou aqueles quadros em volta.
              Ninguém vê Dorian Gray dispersando tempo, na rua. Vive na sua oficina, como um operário dedicado ao trabalho sob as ordens severas de um patrão severíssimo. Esse patrão que deve ser - só se explica assim - o amor confiante que tem da obra que faz. Es­se mesmo amor que leva um oleiro a permanecer de olhos vidra­dos na jarra que brota do barro que se molda nas suas mãos, en­quanto a roda da sua engrenagem gira e gira, a esquecer-se do mundo que grita, se transforma e se desmorona à sua volta.
               E a casa de Dorian, tem essa feição antiga de casa antiga, va­randas cheias de calma, jardins adormecidos ... Onde, parece, a gente está sempre vendo que - como diz o 'poeta Dorian Gray.­"humilde alguém se assenta a um canto e fica a escutar a música das árvores e a lua que chega" .
(BW) 

MEU RIO DE INFÂNCIA

MEU RIO DE INFÂNCIA

            Que amargura saber, eu distante, que o rio Santa Cruz corre violento por debaixo da ponte, cantando suas águas barrentas de encontro às pedras daquela serra que ele contorna, lambendo os barrancos das margens, carregando em seu dorso troncos de árvores enormes, corpos de bois pegados de surpresa no seu itinerário vertiginoso! Que tristeza, eu longe, sem poder ver do alto da ponte meu rio de infância, que me acostumei a amar, nas tardes de inverno, quando, vencendo as recriminações de minha mãe, corria pela estrada do trem, para vê-lo, enorme, do alto da minha pequenez, mais pequeno ainda pela minha inocência e meus olhos ainda não gastos, nas coisas amargas do mundo, sentindo pelo coração ainda não sofrido. Ah, meu rio Santa Cruz que as minhas calças curtas molhou!
             Ah, meu triste e revoltado rio em cujas águas meus lábios gastaram seus primeiros beijos! Ah, meu insatisfeito rio,onde descobri o primeiro símbolo do homem na vida, em querer avançar sem saber para onde nem como, mas altivo e otimista.
             E lembro e recordo na memória o cenário em volta. O Cabugi coberto pela chuva, a água escorrendo das vertentes dos serrotes, a molecada correndo em gritaria pelo campo descoberto, é lá adiante o açude se enchendo, onde as moças iam tomar banho, nuinhas, soltando gritos denunciadores de sexo em efervescência. E ninguém as molestava pois todos só ligavam para a chuva que caía. Ninguém, muito menos o menino de calças curtas que não lhes compreendia a beleza.
             O meu rio continuava resfolegando, fazendo suas águas doerem de encontro às rochas, como faz hoje doer o homem, distante da infância e de uma vida onde as borboletas e os pássaros é que me preocupavam. Hoje, tenho outro rio para olhar: esta vida em vertigem.
(BW)

OLHOS CLAROS


OLHOS CLAROS           

           Diante da janela antiga, ela passava com seus olhos claros. Hoje só essa coisa difícil é que recordo: seus olhos claros. Claros como o amor da primeira mulher que amei.  
Ela não foi nem a primeira nem a última: simplesmente não foi. Um dia olhei-a demoradamente, a tarde descambava mortiça e medíocre. Ela me respondeu com um olhar tão sereno, que tive ímpeto de lhe pedir perdão pelo meu. Não pedi.
            As tardes, naquelas tardes, eram lentas e usavam asas leves. E as tardes, todas as tardes, traziam a moça dos olhos claros. O que mais passava diante da janela era uma gente inútil, para quem nunca usei os meus olhos.
            Eu era ingênuo, imaginava tantas coisas puras, os dois juntos, eu e ela: correrias pelo pomar de nossa casa, seu rosto cansado inclinando-­se sobre meu ombro, eu terno como jamais fui na vida. E depois a caminharmos pela rua inclinada de calçamento torto que sempre foi um problema para a edilidade.
            Mas não guardo a rua, nem suas pedras tortas. Nem guardo sequer a lembrança da moça. Guardo essa coisa difícil: seus grandes, formidáveis, extraordinários olhos claros.
(BW)

O GATO E EU

           O GATO E EU

             Eu viajei com um gato, ou melhor, éramos três: eu, o gato e a senhora gorda. E foi num trem. Voltava eu, de alguns dias de bucolismo, na Fazenda Santa Cruz, que se deita sonolenta aos pés do Cabugi. Era um dia de trem calmo e, no vagão em que eu estava, quase ninguem havia. Eu, sozinho, no meu banco, dividindo a minha distraçao entre um romance de Eça de Queiroz e a mata crespa, que corria, célere, pelo retângulo da janela. Foi quando, em Baixa Verde, entrou aquela senhora enorme, de vestido encar­nado e renda na barra, com um pequeno saco, a boca feita em nó e uma cesta pequena. O saco ela jogou debaixo do banco. A cesta, acomodou-a sobre o assento, entre ela e eu. Resultado: nem mais paisagem, nem leitura. É certo que depois que o trem partiu procurei reconciliar-me com Eça. Mas, a mulher de Baixa Verde não sossegava, botando a cesta pra lá e pra cá. E eu já querendo saber o que diabo havia ali dentro. Uma toalha branca se cosia à  boca da cesta, escondendo um segredo que não me preocupou, até enquanto a mulher não se pôs a ter cuidado com ela.  
              Lá para as tantas, não sei o que a locomotiva viu diante do trilho, que estremeceu toda, espirrando fumaça e água quente. Com o sacolejo da máquina, o nosso vagão estrebuchou, meu livro caiu fora, a cesta da mulher virou e de dentro ... pulou um gato. Um gato preto que, depois de olhar assustado para a dona e para mim, saiu correndo por debaixo dos bancos. A dona do bicho pediu-me auxílio E por sua parte, a delicadeza humana pediu que eu atendesse. E saí com a matrona, procurando o gato, que já começava a me esquentar o sangue. Eu e a mulher. Os outros passageiros apenas olhavam, decerto porque não sabiam o que era delicadeza humana.
               Fui encontrar o bichano, escondido debaixo do último banco, lá no fim do carro. Agachei-me com os joelhos no chão, e meti o braço no escuro. O gato zangou-se e mandou-me um arranhão, de lembrança. A danada da mulher só sabia dizer: "Bichano, psiu, psiu ... " Ate que criei coragem e trouxe o gato. Agarrei o diabo preto, de bigodes enormes, olhos que só lembravam aquele seu irmão do conto de Edgar Poe. Voltei, com a mulher me olhando e quando estava a mete-lo na cesta, o bicho esquentou-se, desprendeu-se de minhas mãos e saltou a janela, ficando para trás, sozinho, na estrada.                  
               Aí, a mulher gorda danou-se. Imediatamente esqueceu minha ajuda (oh triste e inutil delicadeza humana!...) e cobrou-me cinquenta cruzeiros pela gato. Dei-Ihe vinte.
               E ainda dizem que gato preto não dá azar ...
(BW)