Não pude vê-Io. Tanto Maria Emilia o protegia da morte, que ela não aceitava levá-lo assim tão brutalmente em pleno alvorecer do dia.
Temia a visão dos outros, dos muitos presentes aquela hora, como se nossos olhos pudessem tomá-Io, de todo, dos seus olhos somente. Agarrava-se, assim, ao barco, ao madeirame, com todas as energias e as amarras do amor, nessas horas tão fortes quanto o próprio amor verdadeiro, igual aquele de que estava mais do que nunca possuída. Prendia-se alma e corpo aquele barco estranho, escuro, embora coberto de crepe e flores coloridas, que logo mais levaria seu Poeta para a ilha estresonhada, quem sabe, de há quanto? O rosto macilento e chorado ocultava o outro rosto frio do Capitão de longo curso de Poesia e Amor, que Iogo mais partiria para as terras do nunca mais, embora ela soubesse que em breve o barco teria de partir e mãos amigas, desronhecidas, talvez o empurrariam para um singrar em águas azul cinzentas, onde a Poesia seria desde logo o misterioso farol da sua aventura como fora sempre em vida a sua norma de seguir. Maria protegia Berilo com aquele medo terrível que as grandes tragédias revelam. Menos o medo em si, que os grandes mortais temem, e mais o misterioso vago vazio, solitário tempo de vida que além da fronteira ardente da morte que o amante atravessou. Não queria sabê-Io perdido, a viajar dentro em pouco para longe de si, dos filhos, da casa, da cidade. Não sabia ainda compreender nada daquilo tudo que a cercava: o pranto lento de todos, aquelas flores, aquelas tochas a recender ainda mais a vida e morte do seu Poeta, sobretudo o olhar espantado dos filhos diante daquela nau de espanto, ancorada diante de uma cruz, onde um homem chagado e compassivo olhava em silêncio de bronze todo aquele drama. E o choro quase velado da mãe, e sua desolação e funda mágoa que poucos percebiam? Só, ela, a Mãe na dor maior quando outra vez, arrancavam de si o filho, como já uma vez outrora, levaram-no de vez de seu morno e doce seio para as claridades de um mundo nem sempre feliz e claro.
Assim, nao pude ver o querido e velho primo-amigo. Cantor maior da minha Cidade, simples e bom, um franciscano quase perfeito, em busca mais do "absoluto" - como tão bem escreveu Sanderson do que do imediatismo das coisas fúteis que fazem os artifícios, as vaidades, o viver desses dias de desditas, mais ainda sem ele, agora mais pobre pela sua ausência.
E foi melhor não parar por um instante os meus olhos molhados diante do seu rosto. Sei que para isso fomos feitos como diz o Poeta maior "para olhar a face da morte", sim, mas a brutalidade do golpe não dava tréguas para esse ofício mais do que qualquer outro, de puro misticismo, de lenta oração, de demorada meditação frente à escultura da morte. Ali não. Ali, somente o silêncio ou a fuga. Ou o quase não conformar-se. E por isso saí de perto daquele barco ancorado ainda por instantes no chão que tanto amara e a que dedicara amor somente comparável ao esposo admirável e ao Pai excelente que foi.
Saí, Berilo estava sob a proteção de Maria Emília e as preces molhadas de Maria Amélia. Mais longe, os fiIhos. - Sua alegria sempre, indagavam quem sabe, a razão daquilo tudo, aquele barco escuro, aqueles olhos entre atônicos e lacrimosos que cercavam seu Pai dormindo. Por que não o deixavam descansar? Por que não deixavam que somente sua Mãe embalasse Painho naquele sono tão fecundo de lembranças, saudades, reminiscências? Saí não sei para olhar o quê. Salete me sustinha o pranto, palavra, atitudes. A tarde estava clara. Poucas nuvens, e junto a capela, um flamboyant luminoso clareava, com mil fogachos bem rubros o velório do Poeta. Não, não assistiria a sua partida. Queria-o nas antigas alegrias que espaIhara em palavra, canto, gestos. Sua eterna presença de alegria. A viva inteligência, sua bagagem de conhecimentos que como "estrangeiro" carregava pelas "gares" do mundo. O seu conversar, cantante. Seu modo todo seu de dizer coisas que um misto de poesia e sátira enfeitavam.
Saí, simplesmente. Não vi bem nada ao derredor. Não me vi. Passei andando entre passos e casas. Pronunciava palavras do meu coração, somente. E lembrava um não sei quê lembrando sempre enquanto meu velho amigo, aquele audaz moço do trapézio volante que de capitão, agora de misteriosas aventuras, ganharia. Dentro em breve, os longos rumos da sua ilha baudelairiana. Assim, fui saindo, como saio desta crônica, que não sei como comecei nem como termi...
(Newton Navarro)
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