sábado, 22 de janeiro de 2011

BECO DA LAMA


BECO DA LAMA           

             Sobre a foto de muitos anos, amarelecida, desvendo passos e lembranças. O velho Beco da Lama, que eu também poderia cantar num dístico cheio de elipses mentais. A foto tem dez anos. Eu passava ali, repórter de um jornal. Amigos simples descobriam a cabeça, tirando o chapéu. Invariavelmente, meus amigos do Beco usavam chapéu. Chapéu de feltro, chapéu de pano, chapéu de palha, como havia chapéu para ser tirado à passagem do pobre repórter.
             No bolso, pouco dinheiro. Mas havia riso na alma. Contava as notas e via que dava para comer um bife de fígado no “Restaurante Pérola”, onde comi os melhores bifes de fígado de toda a minha vida. Eram espessos, generosos, sangrentos e acebolados. E o garçom caprichava comigo, de quebra, uma enorme cebola extra deitada em um prato e dois vidros de pimenta: um de molho inglês, outro de malagueta. (Agora, lembro que, quando eu era menino, ouvia lá em casa os mais velhos chamarem o molho inglês de molho vegetal, e eu fiquei com uma curiosidade incrível para conhecer o mineral e o animal, até hoje...)
             No Beco, encontrava Seu Pedro, o tanoeiro, mestre na arte de fazer bicas. Gordo, usava umas camisas enormes que pareciam verdadeiras bandeiras a envolver-lhe o corpo. Quando me via, abria o rosto num riso como sua alma e eu sabia que era hora de tomarmos uma meladinha no boteco de Nasi. Mestre Nasi, descendente de árabe, narigão a despencar-se sobre o rosto, era o dono das melhores meladinhas do Beco. Senão da cidade inteira. Caninha, mel de abelha e dois pingos de limão. Havia sempre para tira-gosto um caldo de feijão de alegrar os corações mais duros, ou uns miúdos de galinha que eram a graça da casa.
             Até o mestre Nasi mudou-se do Beco. Esse Beco que, nas quebradas da noite, ficava soturno como uma alma penada, três ou quatro lâmpadas, soltas aqui ou ali, a iluminar a sua solidão. Era a noite dos bêbados trôpegos e das mulheres errantes. Na foto de 1968, o poste que não existe mais, com o velho abajur de ágata a guardar uma lâmpada cheia de enigmas. E parece que ouço o vento, solitário vento, correndo por ali, para desfazer-se num sopro só, lá adiante, na Rua Ulisses Caldas. Beco da Lama, nunca te louvaram, te louvo agora na lembrança que essa velha foto desvenda.
(BW)

Um comentário:

  1. Pois é, nada existe que não deixe as suas marcas ou não tenha a sua história, por isso eu também tenho cá as minhas recordações do antigo e feio Beco da Lama, de chão ligeiramente abaulado, calçado com paralelepípedos, sempre com águas sujas escorrendo abaixo do meio-fio das suas calçadas estreitas, o que certamente o levou a ser batizado com esse nome tão lamentável. Infelizmente, justo por aquela rua o meu pai costumava cortar caminho ao voltar para casa, assim pelas nove horas da noite quando deixava a sua barbearia na rua Ulisses Caldas, ao lado do antigo Café Majestic. Também algumas vezes aos domingos à noite, quando voltávamos da igreja evangélica da Avenida Junqueira Aires, ele cismava em fazer o mesmo trajeto. Bem que eu desejava que seguíssemos pela Avenida Rio Branco, mas nessa época, com os meus sete ou oito anos as crianças daquela época não tinham vontades, então eu caminhava ao lado dele com os olhos quase fechados, morrendo de medo de ver alguma alma do outro mundo naquela rua deserta, estreita e sombria, com aquela luzinha mortiça debaixo daqueles chapeuzinhos, no alto de algum poste. Quando chegávamos ao final dela, já desembocando nas proximidades do saudoso Grande Ponto, eu sentia um alívio enorme. Era como se eu voltasse ao mundo dos vivos, até porque aquele beco à noite mais parecia uma alameda de cemitério. A foto acima, muito autêntica, é bem mais antiga do que as minhas lembranças. E contemplando as pedras que calçam aquele chão, vendo aqueles portais enormes, fico imaginando quantos segredos eles encerram em seu silêncio secular, testemunhas presentes em tantas histórias daquelas antigas noites silenciosas...

    Júnia Pires Falcão
    Rio de Janeiro - 20/02/2011

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