quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

PARIS

PARIS, 1º de janeiro - Esta que, em sonhos idos, julguei inacessível a mim, é agora este sonho palpável, este presente de ano novo que tenho nas mãos com jeito de quem não merece, en­cantado e nervoso. Desde que cheguei no dia 28, depois de uma atribulada viagem de trem onde um casal de velhos franceses se esmerou em gestos e palavras de má recepção, de donos de casa aborrecidos com a chegada da visita imprudente (recepção essa que tanto eu como meus amigos brasileiros concluímos por não aceitar), desde que cheguei, dizia, tenho sentido momentos em que me paro dentro de mim e provo das reações que o presente me proporciona e absorvo o gosto. É Paris para um namorado antigo como eu, que por motivos alheios ao amor, passou tantos anos de conversa de portão, sem poder ver realizado o casamento o que está feito agora.
            Poderia contar tudo em forma de diário, registrando as emoções de cada hora. Emoções simples de péssimo turista, mas de óti­mo amante. Não é que eu odeio os turistas, não. Até os acho a eles todos umas perfeitas crianças. Que dizem com jeito peculiar: "Que beleza!" diante da Torre Eiffel, com a mesma expressão de um garoto que segura nas mãos o brinquedo sonhado por trás da vitrine da loja. Mas prefiro o não-compromisso do diário.
             Desço pelas ruas de Saint Germain de Prés. Neste bairro me hospedo, num Quartier Latin, onde, negros de rostos ameaçadores vivem a discutir a questão argelina, vez ou outra bem ao meu lado, na mesa onde tomo um vinho ou no "metrô" em que viajo por de­baixo de boulevares e do próprio Sena. Por enquanto a chuva miú­da. Depois ela vai e o frio é que permanece. Um conhaque me alenta e saio andando. "Andar, andar, que um poeta não necessi­ta de casa". Sempre dei fé ao verso de Cecília Meireles.
            Vou procurando certos lugares que me trouxeram a Paris e encontro coisas e seres que só Paris possui, relutantemente, turisticamente. Assim é que ao sair da Catedral de Notre Dame, onde o sagrado de Deus se une ao sagrado da arte dos homens, caio nas garras do vendedor de fotos pornográficas. Achou-me com cara de estrangeiro e, ai de mim, de lúbrico. Para eu entender o francês tem que ser falado devagar, e o homem me fala às carreiras naturalmente com medo do gendarme que possa querer jogar-lhe a lei nos ombros. Tento fugir ao homem, mesmo porque não sou aluno de internato para emocionar-me com fotos pornográficas. Enfim consigo e saio na chuva. Outros vendedores iriam encontrar, depois. 
            Sem a chuva, o sol não vem de preguiçoso que é. Estou agora à ponta desta calçada, nesta mesa, cercado de alguns brasileiros: João Luiz, Helena, Lúcia, Dinorah, Aluízio. Eles conversam não sei o que. Um ou outro se sente turista. Outras mesas, outras ca­deiras, outros seres, pela calçada. Uma dessas calçadas líricas de bar que Paris sabe ter, guardando uma poesia especial, que Recife já imita bem e que já aconselhei tanto, e em vão, até agora, ao meu caro Múcio Miranda; conselho de quem quer uma "Cisne" cada vez mais simpática.
            Tomo um gole de cerveja, o que não é novidade. Aquele su­jeito de barba, ali de frente, também toma a sua. A vantagem dele sobre mim é que está com uma francesa e eu não estou. Também, tem muita graça! Paris, além de me deixar entrar, ainda me dar mulher! Estaria eu do jeito daquele visitante que na casa de um amigo, á hora do lanche, disse que com a marmelada e o quei­jo, desejava, também, "se não fosse muito incômodo", a filha bo­nita da casa. Mas lhes falava do sujeito de barba. Lê um livro, dá um beijo na companheira, e muito sério, torna a ler o livro. Vez por outra, entre as duas leituras, toma um gole de cerveja, em vez do beijo. E nessas alterações fico à espera de uma confusão, como por exemplo, que ele beije o livro, leia a cerveja e beba a mulher. O que, felizmente, não acontece; mas a crônica de Paris afirma que já aconteceu. E eu acredito.
(BW)

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